Proposta prevê que cientistas tenham direito a ficar com 20% das rochas extraterrestres encontradas no país
O Brasil não possui regra que defina a posse de meteoritos encontrados em seu território, e cientistas às vezes tem dificuldade de obter essas rochas. Um novo projeto de lei, porém, propõe que 20% dos fragmentos encontrados devem ir para instituições acadêmicas nacionais, e os 80% restantes sejam repartidos entre o indivíduo que encontrou o objeto e o dono da terra onde caiu.
O regulamento, que já está tramitando na Câmara dos Deputados, foi definido no mês passado como substitutivo ao projeto de lei 4.471 de 2020, com um texto bastante diferente do original. A proposta começou a ser desenhada após uma chuva de meteoritos ter caído em Santa Filomena (PE) há dois anos.
— Naquele momento vieram muitos caçadores de meteoritos, comerciantes, de fora e de dentro do Brasil e começaram a comprar os fragmentos. Eu e duas colegas estávamos lá, encontramos o prefeito, ele falou que não sabia como reagir diante daquilo, porque não sabia nem se era legal as pessoas venderem — conta a astrônoma Diana Paula Andrade, da UFRJ, uma das consultoras para o texto da nova lei. — E, na verdade, hoje, não existe mesmo nenhuma lei: o meteorito é de quem pegar — diz.
Por conta da alta do dólar, estrangeiros conseguiram adquirir muitos meteoritos em Santa Filomena, e peças de interesse científico podem ter saído do país sem que nem pudessem ser avaliadas. A ideia da nova, lei diz Andrade, é que pelo menos uma parte razoável dessas rochas seja destina à pesquisa e não apenas a colecionadores.
Meteoritos são de grande interessa para astrônomos, porque sua composição química ajuda a desvendar a história do sistema solar e o passado geológico de outros planetas.
O projeto de lei foi originalmente concebido com um texto mais restritivo, declarando essas rochas como propriedade da União e proibindo sua venda. A decisão de mudá-lo, porém, contou com apoio dos próprios cientistas, porque países que possuem regras muito restritivas tendem a incentivar o mercado negro.
Para os cientistas, é difícil concorrer no mercado pela aquisição dessas peças, que podem atingir preços literalmente astronômicos. Um meteorito de quatro quilos originário de uma colisão de um asteroide com Marte foi vendido no Brasil há dois anos por um valor estimado em R$ 2,5 milhões.
O deputado Jesus Sérgio (PDT-AC), relator da nova proposta ao projeto de lei, afirma que os argumentos dos cientistas foram convincentes.
— Eles lutam para manter um acervo desses achados, e falta incentivo no Brasil para isso — afirma o parlamentar. — A gente acatou o o texto que eles apresentaram e a gente vai apresentar esse substitutivo do projeto de lei. Acredito que em breve a gente consiga colocar para votação — disse. — Não creio que o texto encontre objeção por parte dos deputados, porque dentro da Comissão de Minas e Energia isso ficou muito bem esclarecido e foi bem acatado.
O texto na forma atual estabelece algumas limitações às porcentagens de posse dos meteoritos encontrados.
A cota de 20% destinada a pesquisadores brasileiros, por exemplo, não poderá ser inferior a 30 gramas nem exceder um quilo de material. Quem encontrar uma pedra meteorítica deverá, dentro de 18 dias, registrá-la numa instituição acadêmica, que recolherá sua cota.
Na opinião de Andrade, esse dispositivo do projeto de lei deve até ajudar proprietários das pedras a agregarem valor ao material, atrelando a este uma confirmação oficial de que se trata efetivamente de meteorito.
— Existe muita tentativa de golpe no mercado de colecionadores. A gente já viu na internet fotos de rochas comuns anunciadas por preços altos, com o vendedor dizendo que são meteoritos — diz Andrade.
A busca de meteoritos no Brasil ganhou muita força nos últimos anos por causa da comunidade de astrônomos amadores, particularmente aqueles do grupo Bramon, que tem integrantes em vários estados. Cientistas acreditam que a nova lei possa incentivar ainda mais essa atividade, levando segurança jurídica para quem quer se beneficiar dessas rochas.
Muitas vezes o trabalho de busca é extenuante, porque rochas que explodem no impacto com a atmosfera podem se espalhar por áreas de dezenas de quilômetros.
Fósseis
Se para os meteoritos uma nova proposta de lei conseguiu atingir um consenso razoável, o debate sobre uma outra classe de objeto cobiçada por cientistas, os fósseis, está emperrado no Brasil. O diálogo entre paleontólogos, geólogos e mineradoras tem sido difícil.
A lei que versa sobre fósseis no país completa 80 anos em 2022. Apesar de determinar que essas rochas com vestígios de organismos vivos são propriedade da União, essa legislação tem sido pouco eficaz em garantir que cientistas brasileiros tenham acesso a esse tipo de material.
A exemplo dos meteoritos, o debate sobre o tema também se reacendeu em 2020, como reação ao caso do fóssil de dinossauro Ubirajara jubatus, um exemplar com notável estado de preservação encontrado no Ceará. O espécime foi parar num museu alemão, após um provável episódio de tráfico irregular.
Paleontólogos como Alexandre Kellner, diretor do Museu Nacional, defendem que a lei continue sendo rigorosa.
— Há uma tendência no mundo todo hoje de os países serem bem restritivos com seus fósseis. Você não pode ir para Itália, Argentina, Austrália ou China hoje para coletar um fóssil e ir embora — diz o cientista.
Como um vestígio de organismo biológico perde valor ao ser fracionado, a solução de dividir cotas dos objetos descobertos, tal qual proposta para os meteoritos, não funcionaria para os fósseis.
O que precisa mudar na lei, diz, são dispositivos para investigar caçadores de fósseis e fiscais que atual irregularmente.
— Onde está a ANM (Agência Nacional de Mineração) que não coíbe esses maus profissionais de estarem fazendo o que aparentemente é algo contra a atual situação de lei? — questiona.
Uma limitação da atual legislação é que ela deixa em aberto se os fósseis são patrimônio “mineral” ou “cultural”. Integrantes da Febrageo (Federação Brasileira de Geólogos) defendem que a primeira interpretação é aquela que se encaixa na lei, primeiramente. Um artigo publicado por pesquisadores ligados à entidade defende que a segunda interpretação se aplica apenas em materiais relacionados à cultura humana, ideia que não agrada paleontólogos.
— A diferenciação entre o fóssil que precisa ser preservado e aquele que hoje é utilizado como recurso mineral precisa ficar clara na legislação — afirma o geólogo Caiubi Kuhn, professor da UFMT e um dos diretores da Febrageo. — Em princípio não seria preciso criar uma lei nova, mas a ANM teria de publicar e especificar isso de forma um pouco mais clara dentro dos normativos internos.
O GLOBO entrou em contato com a ANM para comentar o tema, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.
Fonte: O Globo